O Estrangeiro em si

Luiz Eduardo Amaral

K1.
Deleuze e Guattari, em seu livro Kafka: por uma literatura menor, indagam por onde começar uma abordagem da obra kafkiana, por qual entrada, por qual buraco invadir sua obra. E a resposta é: por qualquer um. O conceito de rizoma é adotado para que fique bem claro que não há uma única entrada. A entrada está em toda parte. Até um beco sem saída pode ser uma boa entrada. E o rizoma circulando pelos nossos neurônios, através dos impulsos eletromagnéticos do cérebro. "A estrutura óssea de sua fronte impede-lhe a passagem. É por isso que ele se lança contra ela até sangrar" (KAFKA, 1993: 79). Escrever como um animal cava sua toca. Construir a obra palmo a palmo, pedra a pedra, palavra a palavra. A concretude da palavra, a palavra usada, a palavra gasta.
Como ler Kafka ? Como uma simples manifestação textual do mundo real, cotidiano, ordinário, ou como o sopro raro do gênio? Sem interpretar, e sem a pretensão se embrenhar em sua vasta fortuna crítica; sem sequer ter apreendido completamente o intrincado livro dos dois franceses, assim mesmo este texto. Por isso mesmo este texto, que procura pensar Franz Kafka, levantar uma hipótese para a relação do autor com sua obra. Hipótese que está embutida no conceito de ‘estrangeiro em si’.
Paradoxo? Mas quem pode dizer que a obra de F. K. não é paradoxal? O que pensar de um homem que dedica toda sua vida a edificar uma monumental obra literária e em seu testamento pede ao melhor amigo, Max Brod, que queime a maior parte de seus escritos, sem sequer lê-los? Estrangeiro em si, estrangeiro em si mesmo. Estranho e familiar, ele convivendo com o outro dele, nele mesmo.

 

A.
Estrangeiro
: 1. de nação diferente daquela a que se pertence. 2. Relativo ou pertencente a, ou próprio de estrangeiro. 3. Diz-se de país que não é o nosso. 4. Que é de outra região, de outra parte, ainda que pertencente ao mesmo país; ádvena, forasteiro, estranho. 5. A(s) terra(s) estrangeira(s); a estranja. 6. Qualquer nação estrangeira. 7. Indivíduo que não é natural de país onde mora ou se encontra. Sin. Bras. Pop. Gringo ou lordaça. 8. Indivíduo estrangeiro. 9. Indivíduo estrangeiro; ádvena, forasteiro, estranho, estranja.

Pela clareza e concretude dos conceitos, o dicionário. Qualquer um valeria. A definição número 7 parece soar bem. Indivíduo que não é natural de país onde mora ou se encontra.
Ser ou não ser natural, eis a questão. Mas e o ser que não é natural de si mesmo, para si mesmo? Isso é possível? Que choque, que carga provocaria?

O encontro consigo mesmo é, talvez, ainda mais semeado de ciladas do que a face a face com outro, mesmo se parece fácil para todo mundo. (...) Damo-nos conta, se queremos ser lúcidos e não cedemos a cegueira do pensamento abobado (...) de que o que descobrimos, no interior de nós mesmos, é nossa própria estranheza. Freud deu-lhe um belo nome: ‘a inquietante estranheza’, Das Unheimliche. (ENRIQUEZ, 1998: 37).

A hipótese é que Kafka teria desenvolvido algo como uma consciência ‘não-natural’, que viveria em atrito com a consciência ‘natural’. Uma consciência estrangeira dentro de si.
O ‘estrangeiro em si mesmo’ produziria energia extra, como um dínamo, acionado pelo movimento de tensão entre as duas ‘consciências’ ou pulsões, a familiar e a estranha.
"Ele tem a sensação de que, pela simples circunstância de existir, esteja bloqueando seu próprio caminho. Por outro lado, é exatamente nessa idéia de bloqueio que obtém a prova de estar vivo" (Kafka, 1993: 79).
A sensação de existir e, pelo simples fato de existir, estar bloqueando o próprio caminho. E desse embate, desse bloqueio, a prova de estar vivo. Dessa dinâmica, a energia que vai movimentar o motor da criação e da especulação filosófica. Principalmente da criação literária, ofício de paciência e tenacidade. Para a criação de um mundo ficcional a partir do mundo, sem estar inteiramente contido, mas em intersecção com ele. Uma espécie de entre-lugar. Não um mundo à parte, nem o mundo ele mesmo: uma instância específica do mundo. Um mundo sem estrangeiro, só dos estrangeiros, que perderiam aí a condição de estrangeiros. Um lugar onde o estrangeiro em si esteja à vontade, lugar no qual ele se reconheça, não se estranhe. "Se somos aventureiros da vida interior e estamos abertos ao mundo, então o estrangeiro em nós e no outro será acolhido" (ENRIQUEZ, 1998: 40). Não virá daí a grande literatura? Não se poderia afirmar semelhantes coisas de Clarice Lispector, de Guimarães Rosa, de outros tantos grandes autores? Talvez o que se costuma chamar de ‘gênio’ seja apenas isso, o estrangeiro em si, que consegue externar de forma extremamente consciente e elaborada seu estrangeirismo para o mundo.

 

F.
F de Franz, F de faca biográfica.

Muitos críticos literários, munidos do ‘Abre-te Sésamo’ psicanalítico (que é, em si, antes uma engenhosa ferramenta ficcional do que um método rigorosamente científico de pesquisa psicológica), apoiam-se na biografia do ser humano F.K. pensando que ela lhes dará as coordenadas decisivas para a interpretação do escritor. No entanto, embora peculiar, ela não é, e jamais será, o guia que nos conduzirá à saída do labirinto kafkiano (SILVEIRA, 1993).

Mas quem quer sair do labirinto? O labirinto foi construído para que se possa se perder em seu bojo. O presente texto não é uma crítica literária, não tem tal pretensão. Traços biográficos podem ser úteis a este cruzamento vida/obra.
Franz Kafka nasceu em Praga, Boêmia, em 3 de julho de 1883. Filho de pais judeus de origem alemã, já nascido na contradição: "(...) embora Praga fosse importante cidade do Império Austro-húngaro, ele não deixava de ser um alemão (raça dominante) entre os tchecos e um judeu (raça de segunda classe) entre os austríacos e alemães." (SILVEIRA, 1993).
Contra–tradição. A tradição judaica, a formação germânica, no coração da Boêmia. Nascido e criado em Praga, F. K. teve uma educação alemã. Vivendo no seio de uma língua (tcheca), mas estudando e falando em casa outra. Já aqui uma sugestão de alteridade, de identidade dividida, ou melhor, multiplicada. Por dois, por duas matrizes. A judia/alemã, de sua casa, de sua família – que, apesar de não ser ortodoxa, respeitava as tradições – e a matriz tcheca, das ruas de Praga. Quanto a essa, não cabem muitas observações; mesmo a dimensão de sua influência na formação de F. K. é relativamente bem menos significativa.
Quanto à matriz judaica, o texto de Eugène Enriquez abre vastas avenidas de possibilidades. Por exemplo, quando trata da tentação dos países menos antigos — como a Alemanha — de "também se situar na origem, e se prevalecer, como o povo judeu e contra ele, da aventura divina de seus povos" (ENRIQUEZ, 1998: 41). Ou tematizando a questão da ‘pureza’ do povo judeu, nesta passagem:

Se, portanto, os judeus são muitas vezes parecidos com os autóctones e se seu retraimento não lhes é sempre imputável, isso não impede que apareçam como um povo à parte, invejado por sua presumida pureza, condenado por sua esquisitice, e como a imagem-tipo de uma alteridade irredutível. (1998: 45)

É inegável o peso da tradição judaica sobre a pessoa de Kafka. O que não impediu — ou até talvez tenha motivado — que ele fizesse a seguinte anotação em seu diário:

Jamais fui orientado na vida, ao contrário de Kierkegaard, pela mão já bastante desalentada do cristianismo, nem me agarrei, como os sionistas, à última franja do xale de orações dos judeus. Vejo-me ora como um fim, ora como um começo. (KAFKA, 1993: 9).

Fim e começo. Movimentos opostos e complementares, intensidades de percepção de um estrangeiro em si.

 

K.
Mãos à obra. Roberto Corrêa dos Santos, em aula ministrada em curso do prof. Júlio Diniz, citou Kafka como um escritor que tematiza a questão do estrangeiro. Por exemplo em A Metamorfose, Gregor Samsa uma manhã acorda estrangeiro em sua própria casa. O motivo, sua transformação em Ungeziefer, ‘inseto daninho’, ou ‘inseto monstruoso’. Samsa é caixeiro viajante e, metamorfoseado em inseto, subitamente se encontra numa situação de estrangeiridade extrema. Seus familiares passam a ser completos estranhos para ele, que vai sendo acuado, atacado, até perecer no final. A estratégia de A Metamorfose é extremizar ao máximo uma situação de estranhamento. Mais uma vez o Unheimlich – o familiar e estranho, que permanece muito tempo na sombra e dela sai.
Mas outra obras tocam a questão de maneiras mais diretas. Em "Na Colônia Penal", o protagonista é chamado uma vez de "explorador", e no resto da novela de "viajante". É ele que assiste ao ritual macabro de execução, é para ele que o oficial faz a exposição da máquina e de seu funcionamento, e ele presencia a auto-imolação do oficial. Ele é estrangeiro e por isso tem certas prerrogativas, o oficial o respeita, chega mesmo a temer que sua opinião contrária à execução acabe de vez com a máquina. A história se desenrola diante dos olhos do viajante, tal qual um filme estranho. Aqui, o estrangeiro é o viajante, mas o estranho está na ilha, a "Colônia Penal".
Do mesmo modo, em "Uma Folha Antiga", brilhante narrativa curta de Kafka incluída no livro Um Médico Rural, há uma interessante inversão de papéis do estrangeiro e do autóctone. Os invasores, chamados de "nômades" pelo narrador, são bárbaros que se comunicam por grunhidos "semelhante ao das gralhas" (KAFKA, 1991: 20), e se apropriam da capital. "Acampam a céu aberto, pois abominam as casas" (1991: 19), e oprimem os habitantes locais como se eles é que fossem os estrangeiros. "Não se pode afirmar que empreguem a violência. Ante a sua intervenção as pessoas se põe de lado e deixam tudo para eles" (1991: 20). Ao narrador, desolado, resta constatar a ruína para a qual seu povo caminha, estrangeiro em seu lugar, pária em sua própria pátria.

 

 

A.
Ainda algumas observações sobre estrangeiro e o estrangeiro em si. Enquanto o estrangeiro precisa se deslocar espacialmente para se tornar estrangeiro – do local que nasce ou do local que habita para outro – o estrangeiro em si desenvolve esse ‘estado’ onde estiver. Não é necessária nenhuma viagem, nenhum movimento externo. A mudança é interna, sutil. Mas o estado de percepção é outro. "Há pelo menos duas tarefas a cumprir nos albores da tua vida: reduzir cada vez mais o diâmetro do círculo que te contenha e verificar a todo o instante se não ficaste escondido fora dele" (KAFKA, 1993: 116).
O estrangeiro como uma percepção. Estados alterados de consciência. O estímulo maior que é estar ‘num outro lugar, com um fluxo contínuo de novas informações, novos perceptos, novos afetos’. E de como Kafka (e essa é minha hipótese), um estrangeiro em si mesmo, estava constantemente exposto a este fluxo de intensidades, de novas percepções do real. O ordinário X o extraordinário. O comum/cotidiano X o raro/inesperado.
Kafka é o grande paradigma do estrangeiro em seu território, do estrangeiro em sua casa, estrangeiro em seu corpo.

 

1 N. E. (estratégia sintática de responsabilidade do autor).



Referências Bibliográficas:


KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos. São Paulo: Civilização Brasileira, 1993.

ENRIQUEZ, Eugène. "O judeu como figura paradigmática do estrangeiro" In: O Estrangeiro. /s.l./ Escuta, 1998.

SILVEIRA, Ênio. Contos, Fábulas e Aforismos. São Paulo: Civilização Brasileira, 1993.